sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Se não fosse pelo meu treinamento nessa quinta, 6 de novembro, eu teria saído mais tarde de casa e teria reclamado do transito da marginal pinheiros, em São Paulo. Se eu tivesse acordado na hora que me programei e saído de casa 20 minutos antes como planejado, eu teria passado reto e nem saberia o que ocorreu. Nada do que eu fizesse neste dia, nem a ordem dos eventos, teria mudado o fato. A única coisa diferente, não seria eu a contadora dessa historia. Talvez ninguém contasse essa historia, os jornais só divulgaram uma nota para justificar o transito – “Um homem de cerca de 40 anos se jogou da Ponte Eusébio Matoso. Três viaturas do Corpo de Bombeiros foram para o local. Não há informações sobre o seu estado de saúde. Como reflexo, a ocorrência congestionou as marginais.” Talvez ele merecesse mais que um parágrafo e talvez sua vida ou sua morte importasse mais do que congestionar as marginais. Meus pulmões não são tão fortes para eu gritar para todo mundo “Ei! Ele se acabou no chão feito um pacote flácido e agonizou no meio do passeio público!”, e nem minha mente tão forte para reviver a mesma historia varias vezes, por isso contarei uma vez só.
Eu estava, como a maioria dos paulistanos, sozinha no carro me dirigindo para meu trabalho, quando uma pessoa, que talvez fosse um boneco, caiu lentamente do céu e caiu no teto de um carro branco a minha frente e rodopiou para o asfalto frio. Se eu continuasse eu passaria pelo seu crânio, se eu não parasse não teria sangue em minhas veias. Parei o carro, antes de qualquer coisa, antes de sair do carro, antes de pensar, eu liguei para a emergência. 911, não esse é dos Estados Unidos, é 191, acho que esse é da policia, 192 acho que é dos bombeiros, 1 – 9 – 2  Na verdade, 190 é policia militar, 191 é policia rodoviária federal, 192 é ambulância e 193 é bombeiros. Sério Brasil, não seria mais fácil ter só um numero para emergências? Eu consegui ligar para o numero certo, mas acho que fui só eu porque as outras pessoas estavam no telefone e depois não estavam. O que aconteceu? Ligaram para a mãe? Ligaram para o 911? Porque só eu fiquei recebendo as instruções de primeiros socorros? O que aconteceu com o resto?
Ele caiu de bruços, no inicio ainda estava respirando forte pela barriga, NÃO MUDA ELE DE POSICAO, o rapaz do 192 foi bem claro, ele teve espasmos, e então começou a respirar cada vez mais fraco. Morreu, já era, ouvi um motoqueiro dizer, ele foi ficando com a boca e o nariz cada vez mais roxo. A CET (Companhia de Engenharia de Trafego) chegou, o rapaz da CET virou o homem de roupas simples de lado, usou seu sapato gasto como travesseiro. Eu avisei no telefone e a resposta “aí é responsabilidade dele, você não mexe no corpo”. Ao ficar de lado, ficou visível que ele estava ferido na barriga, ele tinha uma marca enorme de uma cicatriz cirúrgica e em cima, sangue e um buraco. Será que ele foi esfaqueado lá de cima? Será que ele se cortou na queda? E como uma pessoa pode estar lá em cima? A ponte em questão era a ponte Goldfarb, um pouco antes de Eusébio Matoso, uma ponte mais alta que as demais e lá em cima não há área de pedestre, lá em cima havia um ônibus com as janelas abertas, teria ele pulado de dentro do ônibus?
Apos o CET mantê-lo de lado, eu não consegui mais acompanhar a respiração. Coloca o rosto perto do nariz e da boca, dizia um, não se aproxima dai não, dizia outro. Eu não consigo sentir a respiração. Vira ele de barriga para cima, tem algo obstruindo a boca e o nariz? Dentes quebrados, sangue, mas nenhuma obstrução. Coloque a mão na testa dele e outra no queixo e incline a cabeça para traz. Agora coloque sua mão no peito e a outra por cima. Não faz isso não moça. O CET não me deixou seguir com a massagem cardíaca, naquele ponto talvez fosse inútil, creio que ele já estava morto. Ele pegou meu celular e falou com o rapaz da emergência. A ambulância e os bombeiros chegaram. Nós não temos treinamento e você não tem proteção, você não sabe o que ele tem e o que pode acontecer se encostar no sangue. Eles querem que você faça, mas se o delegado achar que foi algo que você fez, então você pode ter um problemão. Com estas palavras eu fui liberada pelo CET. Segui meu caminho, cheguei no trabalho, sentei, levantei e finalmente chorei pelo rapaz de roupas simples, sapatos gastos que não conheci até sua ultima agonia. “Dançou e gargalhou como se fosse o próximo / E tropeçou no céu como se ouvisse música / E flutuou no ar como se fosse sábado / E se acabou no chão feito um pacote tímido / Agonizou no meio do passeio náufrago / Morreu na contramão atrapalhando o público”


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